O mais difícil de se entender no
pensamento de Thomas Hobbes - melhor dizendo, a chave para entender o seu
pensamento - é o que ele diz do estado de natureza. Sabemos que Hobbes é um
contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o
XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está
num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização -
que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as
regras de convívio social e de subordinação política.
No século XIX e mesmo no XX,
quando se firmaram as concepções modernas da história e da ciência social, os
contratualistas foram muito contestados.
Ao iniciar uma interpretação
sociológica do direito, na metade do século XIX, Sir Henry Maine - por exemplo
- criticou-os asperamente: seria impossível (dizia) selvagens que nunca tiveram
contato social dominarem a tal ponto a linguagem, conhecerem uma noção jurídica
tão abstrata quanto a de contrato, para que pudessem se reunir nas clareiras
das florestas e fazerem um pacto social. Na verdade (continuava), o contrato só
é possível quando há noções que nascem de uma longa experiência da vida em
sociedade.
A guerra se generaliza - Começamos por essa crítica porque
espontaneamente, quando um homem do século XX lê os contratualistas, ele sente
a mesma estranheza que Maine. E por isso é preciso ver que erro Maine cometeu.
Raro, ou nenhum, contratualista pensou que selvagens isolados se juntam numa
clareira para fazer um simulacro de constituinte. Voltaremos a isso depois (ao
ver o que é ciência política para Hobbes). Por ora, só isso: o homem natural de
Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor
dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a
vida social. Para Hobbes, como para a maior parte dos autores de antes do
século XVIII, não existe a história entendida como transformando os homens.
Estes não mudam. É por isso que Hobbes, e outros, citam os gregos e romanos
quando querem conhecer ou exemplificar algo sobre o homem, mesmo e seu tempo.
Como o homem é, naturalmente?
"A
natureza fez os homens tão iguais, quanto ás faculdades do corpo e do espírito,
que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo,
ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo
isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente
considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer
benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à
força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer
por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados
pelo mesmo perigo.
Quanto
ás faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavras, e
especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e
infalíveis a que se chama ciência; a qual muitos poucos têm, e apenas numas
poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa, nascida conosco, e não pode ser
conseguida - como a prudência - ao mesmo tempo que se está procurando alguma
outra coisa), encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a
igualdade de força.
Porque
a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente
oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que
talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção
vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõe possuir em
maior grau do que o vulto; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles
próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou devido a concordarem com
eles, merecem sua aprovação.
Pois a
natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos
outros maior inteligência, maior eloquência ou maior saber, dificilmente
acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque vêem sua
própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. mas isto
prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais.
Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de
alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes
coube. (Leviatã, cap.
XIII, p. 74)
Nesse texto célebre - e o que
causou maior irritação contra Hobbes - ele não afirma que os homens são
absolutamente iguais, mas que são "tão iguais que...": iguais o
bastante para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro. Todo
homem é opaco aos olhos de seu semelhante - eu não sei o que o outro deseja, e
por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais
prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é forçado
a supor o que farei. Dessa suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais
razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para
evita rum ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens. Por
isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os
outros é a atitude mais racional que eu posso adotar (é preciso enfatizar esse
ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em guerra
contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos racionais, no
estado de natureza.)
"(Da)
igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto á esperança de
atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo
tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no
caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes
apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.
E
disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de
um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar
conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças
conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho,
mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no
mesmo perigo em relação aos outros.
E
contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se
garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia,
subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário
para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente
grande para ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige,
conforme é geralmente admitido.
Também
por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos
atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige, se
outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de
modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão
incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma
atitude de defesa. Consequentemente esse aumento do domínio sobre os homens,
sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido.
Por
outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e
sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de
manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe
atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos
os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em
que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os
submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos
outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor,
causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo.
De
modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia.
Primeiro, a competição, segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.
A
primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a
segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se
tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens;
os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra,
um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer
seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes,
seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.
Com
isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um
poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela
condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de
lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida.
Portanto
a noção de tempo deve ser levada em conta quanto á natureza da guerra, do mesmo
modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo
não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura
vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real,
mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há
garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (Ibidem, cap. XIII, p.
74-6).
Hobbes tem perfeita consciência
de que essa definição há de chocar seus leitores, que se prendem à definição
aristotélica do homem como zoon
politikon, animal social. Para Aristóteles, o homem naturalmente vive em
sociedade, e só desenvolve todas as suas potencialidades dentro do Estado. Esta
é a convicção da maioria das pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que
há na convivência com os demais homens, e conceber a relação social como
harmônica. Por isso Hobbes acrescenta um apelo á experiência pessoal:
"Poderá
parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a
natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e
destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando
nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela
experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando
empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai
dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e
isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a
vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita.
Que
opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao
fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres?
Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com
minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos
e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as
ações que derivam dessa paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de
uma lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam feitas
as leis; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa
que deverá fazê-la" (Ibidem, cap. XIII, p. 76)
O que Hobbes pede é um exame de
consciência: "conhece-te a ti mesmo". Estamos carregados de
preconceitos, acha Hobbes, que vêm basicamente de Aristóteles e da filosofia
escolástica medieval. Mas o mito de que o homem é sociável por natureza nos
impede de identificar onde está o conflito, e de contê-lo. A política só será
uma ciência se soubermos como o homem é de fato, e não na ilusão; e só com a
ciência política será possível construirmos Estados que se sustentem, em vez de
tornarem permanente a guerra civil.
"[...]
há um ditado que ultimamente tem sido muito usado; que a sabedoria não se
adquire pela leitura dos livros, mas do homem. Em conseqüência do que aquelas
pessoas, que regra geral são incapazes de apresentar outras provas de sua
sabedoria, comprazem-se em mostrar o que pensam ter lido nos homens, através de
impiedosas censuras que fazem umas às outras, por trás das costas. Mas há um
outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os
homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao
trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce
te ipsum, "Lê-te a ti mesmo".
O que
não pretendia ter sentido, atualmente habitual, de pôr cobro à bárbara conduta
dos detentores do poder para com seus inferiores ou de levar homens de baixa
estirpe a um comportamento insolente para com seus superiores. Pretendia
ensinar-nos que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos
diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que
faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receia etc., e por que motivos o
faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de
todos os outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me á semelhança das
paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança etc., e
não à semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas,
esperadas etc.
Quanto
a estas últimas, a constituição individual e a educação de cada um são tão
variáveis, e são tão fáceis de ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres
do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à
mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem
investiga os corações. E, embora por vezes descubramos os desígnios dos homens
através de suas ações, tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas,
distinguindo todas as circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que
decifrar sem ter uma chave, e deixar-se o mais das vezes enganar, quer por
excesso de confiança ou por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê
seja um bom ou um mau homem.
Mas
mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através de suas
ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecidos, que são muito poucos.
Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou
aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil,
mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas ainda
assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria
leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram
o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de doutrina não
admite outra demonstração. (Introdução, Ibidem,
p. 6)
Dessa perspectiva algo cética,
sem ilusões, Hobbes deduz que no estado de natureza todo homem tem direito a
tudo:
"O
direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que
cada homem possui de usar seu próprio poder, de maneira que quiser, para a
preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente
de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim. (Ibidem, cap. XIV, p. 78)
Como pôr termo a esse conflito - Para Hobbes, o homem é o indivíduo. Mas
atenção, antes de falarmos em individualismo burguês. O indivíduo hobbesiano
não almeja tanto os bens (como erradamente pensa o comentador Macpherson), mas
a honra. Entre as causas da violência, uma das principais reside na busca da
glória, quando os homens se batem "por ninharias, como uma palavra, um
sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer
seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes,
seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome" (Ibidem, cap. XIII, p.
75). A honra é o valor atribuído a alguém em função das aparências externas.
O homem hobbesiano não é então um homo oeconomicus, porque seu
maior interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais
importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a
própria riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem
vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser
respeitado - ou ofendido - pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer.
Da imaginação - e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores do século
XVII e XVIII - decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar o que é
irreal. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se
imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído.
Como pôr termo a esse conflito?
Há uma base jurídica para isso; depois do direito de natureza, que já vimos,
Hobbes define o que é a lei de natureza:
"Uma
lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral,
estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que
possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou
omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora
os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex,
o direito e a lei,
é necessário distingui-los um do outro. Pois
o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei
determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se
distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis
quando se referem à mesma matéria.
E dado
que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma
condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado
por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa
servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos,
segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas,
incluindo os corpos dos outros.
Portanto,
enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá
haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver
todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver.
Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, Que todo homem deve
esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso
não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A
primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza,
isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de
natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
Desta
lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que
procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que
um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal
considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu
direito a todas as coisas, contentando-se em relação aos outros homens, com a
mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.
Porque
enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os
homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não
renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para
que alguém se prive do seu, pois isso eqüivaleria a oferecer-se como presa
(coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do
Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de
todos os homens: Quod tibi
fieri non vis, alteri ne feceris.
Renunciar
ao direito a alguma coisa é o mesmo que privar-se da liberdade de negar ao
outro o benefício de seu próprio direito à mesma coisa. Pois quem abandona ou
renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um direito que este já não
tivesse antes, porque não há nada a que um homem não tenha direito por
natureza; mas apenas se afasta do caminho do outro, para que ele possa gozar de
seu direito original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas não sem que
haja obstáculos da parte dos outros. De modo que a conseqüência que redunda
para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma
diminuição equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito original.
(Ibidem cap. XIV, p. 78-9)
Mas não basta o fundamento
jurídico. É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado, para forçar
os homens ao respeito. Desta maneira, aliás, a imaginação será regulada melhor,
porque cada um receberá o que o soberano determinar.
"Porque
as leis de natureza (como a justiça,
a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em
resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na
ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são
contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a
parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a
espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.
Portanto,
apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de
respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um
poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá
legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção
contra todos os outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas
famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação
legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto
maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida". (Ibidem,
cap. XVII, p. 103)
Mas o poder de Estado tem que ser
pleno. O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania - os
poderes do rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades, dos
Parlamentos. Jean Bodin, no século XVI, é o primeiro teórico a afirmar que no
Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa
resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão.
Hobbes desenvolve essa idéia, e
monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade
nasce com o Estado.
"A
única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das
invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim
uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos
frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua
força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas
diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.
O que
eqüivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como
representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como
autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a
praticar, em tudo o que disser respeito á paz e segurança comuns; todos
submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões à
sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira
unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,
ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.
Feito
isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração
daquele grande Leviatã, ou
antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos,
abaixo do Deus Imortal,
nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada
indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o
terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no
sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mútua contra os inimigos
estrangeiros.
É nele
que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande
multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada
um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.
Aquele
que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os
restantes são súditos."
(Ibidem, cap. XVII, p. 105-6)
Na tradição contratualista, ás
vezes se distingue o contrato de associação (pela qual se forma a sociedade) do
contrato de submissão ( que institui um poder político, um
governo, e é firmado entre "a sociedade" e "o príncipe"). A
novidade de Hobbes está em fundir os dois num só. Não existe primeiro a
sociedade, e depois o poder ("o Estado"). (veja John Locke).
Porque, se há governo, é justamente
para que os homens possam conviver em paz: sem governo, já vimos, nós nos
matamos uns aos outros.
Por isso, o poder do governante
tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação, se o governante
tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo, tiver que ser justo) -
então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem julgar terá também o
poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não - e portanto será, ele
que julga, a autoridade suprema. Não há alternativa: ou o poder é absoluto, ou
continuamos na condição de guerra, entre poderes que se enfrentam.
Para montar o poder absoluto,
Hobbes concebe um contrato diferente, sui
generis. Observemos que o
soberano não assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar
súditos, não pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato
não existe ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que
ele se conserva fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.
"Diz-se
que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam,
cada um com cada um dos outros,
que a qualquer homem ou assembléia
de homens a quem seja
atribuído pela maioria o direito
de representar a pessoa de
todos eles (ou seja, de ser seu representante),
todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele,
deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens,
tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns
com os outros e serem protegidos dos restantes homens.
É
desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder
soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.
Em
primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que não se encontram
obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual.
Consequentemente, aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados
pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem
legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem,
seja no que for, sem sua licença.
Portanto,
aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar
à monarquia, voltando á confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua
pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembléia de
homens. Pois são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser
considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e
considerar bom fazer. Assim, a dissensão de alguém levaria todos os restantes a
romper o pacto feito com esse alguém, o que constitui injustiça.
Por
outro lado, cada homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua
pessoa, portanto se o depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também
constitui injustiça. Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberano for
morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu
próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano
fizer. E, dado que constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa
ser castigado por sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo
injusto.
E
quando alguns homens, desobedecendo a seu soberano, pretendem ter celebrado um
novo pacto, não com homens, mas com Deus, também isto é injusto, pois não há
pacto com Deus a não ser através da mediação de alguém que represente a pessoa
de Deus, e ninguém o faz a não ser o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania
abaixo de Deus. E esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão
evidente, mesmo perante a própria consciência de quem tal pretende, que não
constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e
inumano.
Em
segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido
ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e
cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do
pacto a parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da
sujeição, sob qualquer pretexto de infração.
É
evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com
seus súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade
de parte do pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles. Com o
todo, na qualidade de parte, é impossível, porque nesse momento eles ainda não
constituem uma pessoa. E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois
de ele receber a soberania esses pactos serão nulos, pois qualquer ato que
possa ser apresentado por um deles como rompimento do pacto será um ato
praticado na pessoa e pelo direito de cada um deles em particular.
Além
disso, se algum ou mais de um deles pretender que houve infração do pacto feito
pelo soberano quando de sua instituição, e outros ou um só de seus súditos, ou
mesmo apenas ele próprio, pretender que não houve tal infração, não haverá
nesse caso qualquer juiz capaz de decidir a controvérsia. Volta portanto a ser
a força a decidir, e cada um recupera o direito de se defender por seus
próprios meios, contrariamente à intenção que o levara àquela instituição.
Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior.
A
opinião segundo a qual o monarca recebe de um pacto seu poder, quer dizer, sob
certas condições, deriva de não se compreender esta simples verdade: que os
pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para obrigar,
dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser o que deriva da espada
pública. Ou seja, das mãos livres e sem peias daquele homem, ou assembléia de
homens, que detém a soberania, cujas ações são garantidas por todos, e
realizadas pela força de todos os que nele se encontram unidos. Quando se
confere a soberania a uma assembléia de homens, ninguém deve imaginar que um
tal pacto faça parte da instituição.
Pois
ninguém é suficientemente tolo para dizer, por exemplo, que o povo de Roma fez
um pacto com os romanos para deter a soberania sob tais e tais condições, as
quais, quando não cumpridas, dariam aos romanos o direito de depor o povo de
Roma. O fato de os homens não verem a razão para que se passe o mesmo numa
monarquia e num governo popular deriva da ambição de alguns, que vêem com mais
simpatia o governo de uma assembléia, da qual podem ter a esperança de vir a
participar, do que o de uma monarquia, da qual é impossível esperarem
desfrutar.
Em
terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano,
os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes.
Ou seja, devem aceitar reconhecer todos os atos que ele venha a praticar, ou
então serem justamente destruídos pelos restantes. Aquele que voluntariamente
ingressou na congregação dos que constituíam a assembléia, declarou
suficientemente com esse ato sua vontade (e portanto tacitamente fez um pacto)
de se conformar ao que a maioria decidir.
Portanto,
se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus decretos, age
contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça parte da
congregação, quer não faça, e que seu consentimento seja pedido, quer não seja,
ou terá que submeter-se a seus decretos ou será deixado na condição de guerra
em que antes se encontrava, e na qual pode, sem injustiça, ser destruído por
qualquer um..
Em
quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e
decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser
considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode
acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de
um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade
está agindo.
Por
esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano
fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu
soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não
deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio
de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os
detentores do poder soberano podem cometer iniquidades, mas não podem cometer
injustiça nem injúria em sentido próprio.
Em
quinto lugar, e em conseqüência do que foi dito por último, aquele que detém o
poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira
pode ser punido por seus súditos. Dado que cada súdito é autor dos atos de seu
soberano, cada um estaria castigando outrem pelos atos cometidos por si
mesmo". (Ibidem, cap. XVIII, p. 107-9)
Igualdade e liberdade - Nesse Estado, em que o poder é absoluto
- perguntará o leitor - que papel caberão à liberdade e á igualdade, estes
grandes valores que aprendemos a respeitar? Ora, o que Hobbes faz é justamente
desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto
entusiasmo - e, dirá ele, tanta ambição, descontentamento e guerra. A
igualdade, já vimos, é o fator que leva à guerra de todos, dizendo que os
homens são iguais, Hobbes não faz uma proclamação revolucionária contra o
Antigo Regime (como fará a Revolução Francesa: "Todos os homens nascem
livres e iguais..."), simplesmente afirma que dois ou mais homens podem
querer a mesma coisa, e por isso todos vivemos em tensa competição. E a
liberdade? Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor.
"Liberdade significa, em sentido próprio, a
ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do
movimento); e não se aplica menos ás criaturas irracionais e inanimadas do que
às racionais. Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não
poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado
pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais
além.
E o
mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou
limitadas por paredes ou cadeiras; e também das águas, quando são contidas por
diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço maior,
costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se
não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz
parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem
liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está
parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença.
Conformemente
a este significado próprio e geralmente aceito da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas
coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de
fazer o que tem vontade de fazer". (Ibidem, cap. XXI, p. 130)
Este capítulo, o XXI, é um dos
mais importantes e menos lidos do Leviatã. Hobbes começa reduzindo a liberdade
a uma determinação física, aplicável a qualquer corpo. Com isso ele
praticamente elimina o valor (a seu ver retórico) da liberdade como um clamor
popular, como um princípio pelo qual homens lutam e morrem.
"[....]
é coisa fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade e,
por falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e direito
inato seu aquilo que é apenas direito do Estado. E quando o mesmo erro é
confirmado pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o
assunto, não é de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo. Nestas
partes ocidentais do mundo, costumamos receber nossas opiniões relativas à
instituição e aos direitos do Estado, de Aristóteles, Cícero e outros autores,
gregos e romanos, que viviam em Estados populares, e em vez de fazerem derivar
esses direitos dos princípios da natureza os transcreviam para seus livros a
partir da prática de seus próprios Estados, que eram populares.
Tal
como os gramáticos descrevem as regras da linguagem a partir da prática do
tempo, ou as regras da poesia a partir dos poemas de Homero e Virgílio. E como
aos atenienses se ensinava (para neles impedir o desejo de mudar de governo)
que eram homens livres, e que todos os que viviam em monarquia eram escravos,
Aristóteles escreveu em sua Política (livro 6, cap. 2): Na democracia deve
supor-se a liberdade; porque é geralmente reconhecido que ninguém é livre em
qualquer outra forma de governo.
Tal
como Aristóteles, também Cícero e outros autores baseavam sua doutrina civil
nas opiniões dos romanos, que eram ensinados a odiar a monarquia, primeiro por
aqueles que depuseram o soberano e passaram a partilhar entre si a soberania de
Roma, e depois por seus sucessores. Através da leitura desses autores gregos e
latinos, os homens passaram desde a infância a adquirir o hábito (sob uma falsa
aparência de liberdade) de fomentar tumultos e de exercer um licencioso
controle sobre os atos de seus soberanos. E por sua vez o de controlar esses
controladores, com uma imensa efusão de sangue. E creio que em verdade posso
afirmar que jamais uma coisa foi paga tão caro como estas partes ocidentais
pagaram o aprendizado das línguas grega e latina. (Ibidem, cap. XXI, p.
132)"
Resta, porém, uma liberdade ao
homem. Quando o indivíduo firmou o contrato social, renunciou ao seu direito de
natureza, isto é, ao fundamento jurídico da guerra de todos. É que, neste
direito, o meio (fazer o que julgasse mais conveniente) contradizia o fim
(preservar a própria vida). O homem percebeu que, como todos tinham esse
direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a guerra - "e a vida do
homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta". (Ibidem,
cap. XIII, p. 76).
Mas, dando poderes ao soberano, a
fim de instaurar a paz, o homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua
própria vida. Se esse fim não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve
mais obediência - não porque o soberano violou algum compromisso (isso é
impossível, pois o soberano não prometeu nada), mas simplesmente porque
desapareceu a razão que levava o súdito a obedecer. Esta é a "verdadeira
liberdade do súdito".
"Passando
agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as
coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem
injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direitos que
transferimos no momento em que criamos um Estado. Ou então, o que é a mesma
coisa, qual a liberdade que a nós mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações
(sem exceção) do homem ou assembléia de quem fazemos nosso soberano.
Porque
de nosso ato de submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade, as quais portanto
devem ser inferidas por argumentos daí tirados, pois ninguém tem qualquer
obrigação que não derive de algum de seus próprios atos, visto que todos os
homens são, por natureza, igualmente livres. Dado que tais argumentos terão que
ser tirados ou das palavras expressas, eu autorizo todas as suas ações,
ou da intenção daquele que se submete a seu poder (intenção que deve ser
entendida como o fim devido ao qual assim se submeteu), a obrigação e a
liberdade do súdito deve ser derivada, ou daquelas palavras (ou outras
equivalentes), ou do fim da instituição da soberania, a saber: a paz dos
súditos ente si, e sua defesa contra um inimigo comum.
Portanto,
em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre
cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o
vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo
súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser
transferido por um pacto. Já no capítulo 14 mostrei que os pactos no sentido de
cada um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos. Portanto:
Se o
soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira
ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se
abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa
sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer.
Se
alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um
crime que cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a
confessá-lo, porque ninguém (conforme mostrei no mesmo capítulo) pode ser
obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio.
Por
outro lado, o consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo
como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de
restrição a sua antiga liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me quando
ele mo ordena. Uma coisa é dizer
mata-me, ou a meu companheiro, se te aprouver, e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro.
Segue-se portanto que:
Ninguém
fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem. Por
conseqüência, que a obrigação que às vezes se pode ter, por ordem do soberano,
de executar qualquer missão perigosa ou desonrosa, não depende das palavras de
nossa submissão, mas da intenção, a qual deve ser entendida como seu fim.
Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi
crida a soberania, não há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa
liberdade.
Por
esta razão, um solado a quem se ordene combater o inimigo, embora seu soberano
tenha suficiente direito de puni-lo com a morte em caso de recusa, pode não
obstante em muitos casos recusar, sem injustiça, como quando se faz substituir
por um soldado suficiente em seu lugar, caso este em que não está desertando do
serviço do Estado. E deve também dar-se lugar ao temor natural, não só o das
mulheres (das quais não se espera o cumprimento de tão perigoso dever), mas
também o dos homens de coragem feminina.
Quando
dois exércitos combatem há sempre os que fogem, de um dos lados, ou de ambos;
mas quando não o fazem por traição, e sim por medo, não se considera que o
fazem injustamente, mas desonrosamente. Pela mesma razão, evitar o combate não
é injustiça, é cobardia. Mas aquele que se alista como solado, ou toma dinheiro
púbico emprestado, perde a desculpa de uma natureza timorata, e fica obrigado
não apenas a ir para o combate, mas também a ele não fugir sem licença de seu
comandante. E quando a defesa do Estado exige o concurso simultâneo de todos os
que são capazes de pegar em armas, todos têm essa obrigação, porque de outro
modo teria sido em vão a instituição do Estado, ao qual não têm o propósito ou
a coragem de defender.
Ninguém
tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja
culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para
proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado. Mas caso
um grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder
soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode
esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e
defenderem uns aos outros?
Certamente
que a têm: porque se limitam a defender sus vidas, o que tanto o culpado como o
inocente podem fazer. Sem dúvida, havia injustiça na primeira falta a seu
dever; mas o ato de pegar em armas subsequente a essa primeira falta, embora
seja para manter o que fizeram, não constitui um novo ato injusto. E se for
apenas para defender suas pessoas de modo algum será injusto. Mas a oferta de
perdão tira àqueles a quem é feita o pretexto da defesa própria, e torna
ilegítima sua insistência em ajudar ou defender os restantes.
Quanto
às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano
não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de
omitir, conformemente a sua discrição. Portanto essa liberdade em alguns
lugares é maior e noutros menor, e em algumas épocas maior e noutras menor,
conforme os que detêm a soberania consideram mais conveniente. Por exemplo,
houve um tempo na Inglaterra em que um homem podia entrar em suas próprias terras,
desapossando pela força quem ilegitimamente delas se houvesse apossado. Mas
posteriormente essa liberdade de entrada á força foi abolida por um estatuto
que o rei promulgou no Parlamento. E em alguns lugares do mundo os homens têm a
liberdade de possuir muitas esposas, sendo que em outros lugares tal liberdade
não é permitida. (Ibidem, cap. XXI, p. 132-4)
Este ponto é delicado, e devemos
insistir nele. O soberano não perde a soberania se não atende aos caprichos de
cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de determinado indivíduo, este
indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os outros não podem aliar-se
ao desprotegido, porque o governante continua a protegê-los. E pouco importa se
o soberano fere o (ex-) súdito tendo ou não razão (afinal, repetimos, ninguém
pode julgar o soberano).
O que desfaz a sujeição política
é que o governante não confia mais no súdito, e prendendo-o com ferros
liberta-o das obrigações jurídicas que assumiu para com ele (em inglês bond significa tanto grilhão quanto obrigação).
O soberano não está atado pelas leis humanas de justiça, por isso, de seu ponto
de vista, não há diferença em ele castigar um culpado ou agredir um inocente.
Já o súdito, se é súdito, é porque prometeu obedecer a fim de não morrer na
guerra generalizado; por isso, de seu ponto de vista tanto faz a sua vida ser
ameaçada por um soberano impiedoso e iníquo, quanto por um governante que o
julgou concedendo-lhe a mais ampla defesa. O que temos, em todos os casos, é o
mesmo esquema: um governante que fere e, por isso, um súdito que recupera sua
liberdade natural.
O Estado, o medo e a
propriedade - Este esquema mostra que, no Estado absoluto de Hobbes, o
indivíduo conserva um direito
à vida talvez sem paralelo em
nenhuma outra teoria política moderna. Só para compararmos com Locke (caps. 2 e
4 do Segundo tratado do
governo): o indivíduo que comete crime grave perde o direito de viver e
reduz-se a fera, que por todos deve ser destruída.
Mas esse Estado hobbesiano
continua marcado pelo medo. Veja-se a capa da primeira edição do Leviatã (1651), que mostra um príncipe,
cuja armadura é feita de escamas que são os seus súditos, brandindo ameaçadora
espada. Ou veja-se o próprio nome, "Leviatã", que é de um
monstro bíblico, que aparece no Livro
de Jó. Hobbes diz: o soberano governa pelo temor (awe) que inflige a seus súditos. Porque,
sem medo, ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não
temesse a morte violenta, que homem renunciaria ao direito que possui, por
natureza, a todos os bens e corpos?
Devemos, porém, matizar o medo
que há no Estado hobbesiano. Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe
no estado de natureza, quando vivo no pavor de que meu suposto amigo me mate.
Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as
linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante.
Segundo, o indivíduo bem comportado dificilmente terá problemas com o soberano.
"Mas
poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se
encontrar sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que
detêm em suas mãos poder tão ilimitado. Geralmente os que vivem sob um monarca
pensam que isso é culpa da monarquia, e os que vivem sob o governo de uma
democracia, ou de outra assembléia soberana, atribuem todos os inconvenientes a
essa forma de governo.
Ora, o
poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, s estas forem suficientemente
perfeitas para proteger os súditos. E isto sem levar em conta que a condição do
homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que a maior que é
possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouca
monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a
guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição
às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a
vingança.
E
também sem levar em conta que o que mais impulsiona os soberanos governantes
não é qualquer prazer ou vantagem que esperem recolher do prejuízo ou
debilitamento causado a seus súditos, em cujo vigor consiste sua própria força
e glória, e sim a obstinação daqueles que, contribuindo de má vontade para sua
própria defesa, tornam necessário que seus governantes deles arranquem tudo o que
podem em tempo de paz, a fim de obterem os meios para resistir ou vencer a seus
inimigos, em qualquer emergência ou súbita necessidade. Por que todos os homens
são dotados por natureza de grandes lentes de aumento (ou seja, as paixões e o
amor de si), através das quais todo pequeno pagamento aparece como um imenso
fardo; mas são destituídos daquelas lentes prospectivas (a saber, a ciência
moral e civil) que permitem ver de longe as misérias que os ameaçam, e que sem
tais pagamentos não podem ser evitadas." (Ibidem, cap. XVIII, p. 112-3)
E, terceiro, o Estado não se
limita a deter a morte violenta. Não é produto apenas do medo à morte - se
entramos no Estado é também com uma esperança (em filosofia, o medo e a
esperança são um velho par) de ter vida melhor e mais confortável.
O conforto, em grande parte,
deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que no tempo de Hobbes já luta
para se afirmar, estabelece a autonomia do proprietário para fazer com seu bem
o que bem entenda. Na Idade Média, a propriedade era um direito limitado,
porque havia inúmeros costumes e obrigações que a controlavam. Por exemplo, o
senhor de terras não podia impedir o pobre de colher espigas, ou fruas, na
proporção necessária para saciar a fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem
este podia deixá-la, nem o senhor podia expulsá-lo para dar outro uso à terra.
Mas, nos tempos modernos, o proprietário adquire o direito não só ao uso do bem
e a seus frutos (que somam-se na palavra usufruto), como também ao abuso: isto
é, o direito de alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo. Hobbes
reconhece o fim das velhas limitações feudais à propriedade - e nisso ele está
de acordo com as classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das
classes populares à terra comunal ou privada - mas, ao mesmo tempo, estabelece
um limite muito forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens
estão controlados pelo soberano.
"A
distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu, do teu e do seu.
Isto é, numa palavra, da propriedade.
E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano. Porque
onde não há Estado, conforme já se mostrou, há uma guerra perpétua de cada
homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e
conserva pela força, o que não
é propriedade nem comunidade, mas incerteza. O que é a tal ponto evidente
que até Cícero (um apaixonado defensor da liberdade), numa arenga pública,
atribuiu toda propriedade às leis civis: "Se as leis civis",, disse
ele, "alguma vez forem abandonadas, ou negligentemente conservadas (para
não dizer oprimidas), não haverá nada mais que alguém possa estar certo de
receber de seus antepassados, ou deixar a seus filhos". E também:
"suprimi as leis civis, e ninguém mais saberá o que é seu e o que é dos
outros". Visto portanto que a introdução da propriedade é um efeito do Estado, que anda pode
fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa, ela só pode ser um
ato do soberano, e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o poder
soberano. Bem o sabiam os antigos, que chamavam Nómos (quer dizer, distribuição) ao que nós
chamamos lei, e definiam a justiça como a distribuição a cada um do que é seu.
Nesta
distribuição, a primeira lei diz respeito à distribuição da própria terra, da
qual o soberano atribui a todos os homens uma porção, conforme o que ele, e não
conforme o que qualquer súdito, ou qualquer número deles, considerar compatível
com a equidade e com o bem comum. Os filhos de Israel eram um Estado no
deserto, e careciam dos bens da terra, até ao momento em que se tornaram
senhores da Terra Prometida, a qual foi posteriormente dividida ente eles, não
conforme sua própria discrição mas conforme a discrição do sacerdote Eleazar e
do general Josué. Os quais, quando já havia doze tribos, ao fazer delas treze
mediante a subdivisão da tribo de José, apesar disso dividiram a terra em
apenas doze porções, e não atribuíram qualquer terra à tribo de Levi,
atribuindo-lhe a décima parte da totalidade dos frutos da terra, divisão que portanto
era arbitrária. E embora quando um povo toma posse de um território por meio da
guerra nem sempre ele extermine os antigos habitantes (como fizeram os judeus),
deixando suas terras a muitos, ou à maior parte, ou a todos, é apesar disso
evidente que posteriormente essas terras passam a ser patrimônio do vencedor,
como aconteceu com o povo da Inglaterra, que recebeu todas as suas terras de
Guilherme, o Conquistador.
De
onde podemos concluir que a propriedade que um súdito tem em suas terras
consiste no direito de excluir todos os outros súditos do uso dessas terras,
mas não de excluir o soberano, quer este seja uma assembléia ou um monarca.
Dado que o soberano quer dizer o Estado (cuja pessoa ele representa), se
entende que nada faz que não seja em vista da paz e segurança comuns, essa
distribuição das terras deve ser entendida como realizada em vista do mesmo. Em
conseqüência, qualquer distribuição que se faça em prejuízo dessa paz e dessa
segurança é contrária à vontade de todos os súditos, que confiaram a paz e a
segurança de suas vidas à discrição e consciência do soberano, e assim essa
distribuição deve, pela vontade de cada um deles, ser considerada nula. É certo
que um monarca soberano, ou a maioria de uma assembléia soberana, pode ordenar
a realização de muitas coisas seguindo os ditames de suas paixões e
contrariamente a sua consciência, e isso constitui uma quebra da confiança e da
lei da natureza. Mas isto não é suficiente para autorizar qualquer súdito a
pegar em armas contra seu soberano, ou mesmo a acusá-lo de injustiça, ou a de
qualquer modo falar mal dele. Porque os súditos autorizaram todas as suas
ações, e ao atribuírem-lhe o poder soberano fizeram-nas suas. Mas em que casos
as ordens do soberano são contrárias à equidade e à lei de natureza é coisa que
será examinada adiante, em outro lugar.
Na
distribuição das terras, o próprio Estado pode ter uma porção, possuindo e
melhorando a mesma através de seu representante. E essa porção pode ser de
molde a tornar-se suficiente para sustentar todas as despesas necessárias para
a paz e defesa comuns. O que seria muito verdadeiro se fosse possível conceber
qualquer representante que estivesse livre das paixões e enfermidades humanas.
Mas sendo a natureza humana o que é, a atribuição de terras públicas ou de um
renda determinada para o Estado seria inútil, e faria tender para a dissolução
do governo e a condição de simples natureza e guerra, sempre que ocorresse o
poder soberano cair nas mãos de um monarca, ou de uma assembléia, que ou fosse
excessivamente negligente em questões de dinheiro, ou suficientemente ousada
para arriscar o patrimônio público numa guerra lona e dispendiosa.
Os
Estados não podem suportar uma dieta, pois não sendo suas despesas limitadas
por seu próprio apetite, e sim por acidentes externos e pelos apetites de seus
vizinhos, a riqueza pública não pode ser limitada por outros limites senão os
que forem exigidos por cada ocasião. Embora na Inglaterra o conquistador tenha
reservado algumas terras para seu próprio uso (além de florestas e coutadas,
tanto para sua recreação como para a preservação dos bosques), e tenha também
reservado diversos serviços nas terras que deu a seus súditos, parece apesar
disso que elas não foram reservadas para sua manutenção em sua capacidade
pública, mas em sua capacidade natural, pois tanto ele quanto seus sucessores
lançaram impostos arbitrários sobre as terras de todos os seus súditos, sempre
que tal consideraram necessário. E mesmo que essas terras e serviços públicos
tivessem sido estabelecidos como suficiente manutenção do Estado, tal teria
sido contrário à finalidade da instituição, pois eram insuficientes (conforme
ficou claro, dados esses impostos subsequentes), e além disso estavam sujeitos
a alienação e diminuição (conforme foi tornado claro pela posterior pequena
renda da coroa). Portanto é inútil atribuir uma porção ao Estado, que pode
vendê-la ou dá-la, e efetivamente a vende e a dá quando tal é feito por seu
representante.
Compete
ao soberano a distribuição das terras do país, assim, como a decisão sobre em
que lugares, e com que mercadorias, os súditos estão autorizados a manter
tráfico com o estrangeiro. Porque se às pessoas privadas competisse usar nesses
assuntos de sua própria discrição, algumas delas seriam levadas pela ânsia do
lucro, tanto a fornecer ao inimigo os meios para prejudicar o Estado, quanto a
prejudicá-lo elas mesmas, importando aquelas coisas que, ao mesmo tempo que
agradam aos apetites dos homens, apesar disso são para eles nocivas, ou pelo
menos inúteis. Compete portanto ao Estado (quer dizer, apenas ao soberano)
aprovar ou desaprovar tanto os lugares como os objetos do tráfico exterior.
Além
do mais, dado que não é suficiente para o sustento do Estado que cada indivíduo
tenha a propriedade de uma porção de terra, ou de alguns poucos bens, ou a
propriedade natural de alguma arte útil (e não existe arte no mundo que não
seja necessária ou para a existência ou para o bem-estar de quase todos os
indivíduos), é necessário que os homens distribuam o que são capazes de poupar,
transferindo essa propriedade mutuamente uns aos outros, através da troca e de
contratos mútuos. Compete portanto ao Estado, isto é, ao soberano, determinar
de que maneira devem fazer-se entre os súditos todas as espécies de contrato
(de compra, venda, troca, empréstimo, arrendamento), e mediante que palavras e
sinais esses contratos devem ser considerados válidos."(Ibidem, cap. XXIV,
p. 150-3)
Um pensador maldito - E aqui podemos entender por que Hobbes
é, com Maquiavel e em certa media Rousseau, um dos pensadores mais
"malditos" da história da filosofia política - pois, no século XVII,
o termo "hobbista", é quase tão ofensivo quanto
"maquiavélico". Não é só porque apresenta o Estado como monstruoso, e
o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom
governante (comparado a um pai) e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque
subordina a religião ao poder político. Mas é, também, porque nega um direito
natural ou sagrado do indivíduo à sua propriedade. No seu tempo, e ainda hoje,
a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e
superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a finalidade do
poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos bens que
dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a pretensão da
burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como isso é o que
vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o pensamento
hobbesiano não terá campo de aplicação em seu próprio país, nem em nenhum
outro.
O resultado pode parecer
frustrante, num pensador que escreveu as três versões de sua filosofia política
enquanto o seu país vivia terrível guerra civil (De corpore politico,
1640; De cive, 1642; Leviatã, 1651), e considerava
que esses livros ofereciam a única base para fundar um Estado que desse, aos
homens, não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material - paz e
conforto. "A ciência política não é mais antiga que meu livro De cive", disse ele,
desqualificando em especial o pensamento aristotélico, então ainda dominante.
Essa ênfase na ciência, porém,
merece nossa atenção. No tempo de Hobbes, o modelo para a ciência estava nas
matemáticas. Os teoremas da geometria, por exemplo, não dependem em nada da
observação empírica para serem verdadeiros. Quando dependemos da experiência,
estamos sempre sujeitos ao engano. Mas, se nos limitamos a deduzir propriedades
de figuras ideais, não há risco de erro. E isso, antes de mais nada, porque as
figuras geométricas não resultam da observação (não existe, na natureza,
círculo ou triângulo perfeito...), mas são criação de nossa mente. Em suma: só
podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo que nós mesmos
engendramos. Dessa perspectiva não pode haver ciência, por exemplo, dos corpos
animais (biologia) comparável em certeza à geometria.
Assim entendemos o papel do
contrato. Na matemática, podemos conhecer porque as figuras foram concebidas,
feitas, por nós. Da mesma forma na ciência política: se existe Estado, é porque
o homem o criou. Se houvesse sociabilidade natural, jamais poderíamos ter
ciência dela, porque dependeríamos dos equívocos da observação. Mas, como só
vivemos em sociedade devido ao contrato, somos nós os autores da sociedade e do
Estado, e podemos conhecê-los tão bem quanto as figuras da geometria. De um só
golpe, o contrato produz dois resultados importantes. Primeiro, o homem é o
artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza. Segundo, o
homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de
alcançar a paz e a prosperidade. Esses dois efeitos, embora a vida do contrato
tenha sido abandonada na filosofia política posterior ao século XVIII,
continuam inspirando o pensamento sobre o poder e as relações sociais.
Fonte: Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro (Prof. da USP) - (Do livro: Os clássicos da política, vol. I, org. Francisco C. Weffort, Ed. Ática, 1989, 54-77)