07/09/2015

Resumo completo de Vigiar e Punir (parte I e II): suplício e punição

Este texto pretende servir como guia para quem ainda não leu ou procura orientação a respeito do que tratam cada item e capítulo da obra Vigiar e Punir, escrita por Michel Foucault e publicada, em 1975, com o título original (em francês) de Surveiller et Punir: Naissance de la prison. Eis que na página 23 podemos ler o propósito da obra segundo seu autor: “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade” (1999, p. 23). Deve-se compreender que, pelo termo “alma”, o filósofo não se refere ao objeto metafísico corrente no senso comum, porém o que poderíamos designar igualmente por “psique”, “subjetividade”, “personalidade”, “consciência”.  


Primeira parte: o suplício


I. O corpo dos condenados. O autor inicia este capítulo expondo dois documentos que explicitam dois estilos penais diferentes. O primeiro documento é a descrição de um suplício, um espetáculo público bastante violento [“Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas” (p. 09)]; já o segundo documento descreve alguns artigos do código de execução penal, com toda a sua utilização fragmentária do tempo e sua sutileza punitiva [“Art. 17. – O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove horas por dia em qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o dia terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão” (p. 10)]. Entre eles há um hiato surpreendente de apenas três décadas (do final do século 18 e início do século 19). Para alguns relatos da época (e também atuais), o desaparecimento do suplício tem a ver com a “tomada de consciência” dos contemporâneos em prol de uma “humanização” das penas. Mas a mudança talvez se deva mais ao fato de que o assassino e o juiz trocavam de papeis no momento do suplício, o que gerava revolta e fomentava a violência social. Era como se a execução pública fosse “uma fornalha em que se acende a violência” (p. 13). Sendo assim, necessário seria criar dispositivos de punição através dos quais o corpo do supliciado pudesse ser escondido, escamoteado; excluindo-se do castigo a encenação da dor. A guilhotina já representa um avanço neste sentido, pois faz com que aquele que pune não encoste no corpo do que é punido. A partir da segunda metade do séc. 19, na mudança do suplício para a prisão, embora o corpo ainda estivesse presente nesta última (por ex: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra), é a um outro objeto principal que a punição se dirige, não mais ao corpo, e sim à alma. “A expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (p. 18). Mesmo que não haja grande variação acerca do que proibido e permitido nesse período, o objeto do crime modificou-se sensivelmente. Não só o ato é julgado, mas todo um histórico do criminoso, “quais são as relações entre ele, seu passado e seu crime, e o que esperar dele no futuro” (p. 19). Assim, saberes médicos se acumulam aos jurídicos para justificar os mecanismos de poder não sobre o ato em si, mas sobre o indivíduo, sobre o que ele é. A justiça criminal se ampara em saberes que não são exatamente os seus e cria uma rede microfísica para se legitimar.


 

II. A ostentação dos suplícios. O capítulo se inicia com a exposição de discursos oficiais que regiam as práticas penais de 1670 até a Revolução (Francesa, em 1789). Execuções eram raras, só em 10% dos casos. Mas a maioria das penas vinha acompanhada do suplício (pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz). O suplício deve marcar o condenado e por isso tem níveis e hierarquias. A morte (execução), por exemplo, é um suplício em que se atinge o grau máximo de sofrimento (por esta razão chamada de “mil mortes”). É um ritual, uma arte de fazer sofrer. E deve ser assistida por todos, constatada como triunfo da justiça. A determinação do grau de punição variava não somente conforme o crime praticado, mas também de acordo com a natureza das provas. Por mais grave que um crime fosse, senão houvesse provas contundentes, o suplício era mais brando do que aquele em que o crime era menos grave, mas que, por outro lado, dispunha de provas integrais sobre o delito. Semelhante a literatura de Kafka, o processo era feito sem o processado saber. Tal sigilo garantia sobretudo que a multidão não tumultuasse ou aclamasse a execução. Desta forma o rei mostrava que “força soberana” não pertencia à multidão, tendo em vista que o crime ataca, além da vítima, também o soberano. Quanto à participação do povo nessas cerimônias, ela era ambígua. Muitas vezes era preciso proteger o criminoso da ira do povo. O rei permitia um instante de violência, mas sem excessos, principalmente para não dar a ideia de privilégio a massa. Por outro lado, em algumas ocasiões o povo conseguiu até mudar a situação do suplício e suspender o poder soberano; em casos semelhantes, havia revolta contra sentenças de crimes menos graves; ou comparecia simplesmente para ouvir aquele que não tinha nada a perder maldizer os juízes, as leis, o poder e a religião (uma espécie de carnaval de papeis invertidos, em que os poderes eram ridicularizados e criminosos viravam heróis).


Segunda parte: a punição


I. A punição generalizada. Neste item, Foucault aborda a mudança da punição. Na segunda metade do séc. 18, o suplício passa a ser visto pelos reformadores com um perigo ao poder soberano, porque a tirania leva à revolta. Entende-se a necessidade de se respeitar no assassino, o mínimo, sua “humanidade”. Antes de tal mudança de concepção, ocorre uma transformação na qualidade dos crimes, que passam do sangue (agressões e homicídios) à fraude e contra a propriedade (roubos, invasões, etc.). Isto tem a ver, obviamente, com o processo social (econômico) que corre paralelo desde o século 17 (desenvolvimento da produção, aumento de riquezas, valorização moral e legal das propriedades privadas, novos métodos de vigilância, policiamento mais estreito). Então não é meramente uma questão de respeito à “humanidade” que fez mudar os dispositivos de punição, mas de adequação de penas aos delitos. Por exemplo, a justiça fica mais rigorosa em alguns casos, antecipando os crimes. O objetivo da reforma não é fundar um novo direito de punir mais equitativo, porém estabelecer uma nova distribuição para que este não fosse descontínuo ou excessivo e flexível em alguns pontos. A reforma não vem somente de fora, parte também de dentro do sistema judiciário, é certo que ela vem de filósofos, mas também de magistrados. Na história da França, a reforma se consolidou após a Revolução porque insidia diretamente sobre os pobres. Inauguram-se aí duas objetivações, do criminoso e do crime: o criminoso como homem da natureza que precisa de cultura, o “anormal”, o louco, o doente, o monstro; e a organização de campo de prevenção, constituição de certeza e verdade, codificação, definição dos papeis, regras de procedimento.


 

II. A mitigação das penas. A reforma do sistema punitivo caminha em direção à noção de que a punição deve participar de uma mecânica perfeita em que a vantagem do crime se anule na desvantagem da pena; desestimulando, assim, futuros contraventores e, principalmente, eliminando a reincidência. Neste sentido, a punição não deve aparecer mais como efeito da arbitrariedade de um poder humano, mas tão somente consequência natural da prática criminosa. Nesse novo mecanismo, o poder que pune se esconde; funciona como uma tentativa de diminuir o desejo que torna o crime algo atraente. Por isso as penas não podem durar para sempre, elas precisam terminar, mostrar sua eficácia, tornando o criminoso virtuoso. É verdade que existem os incorrigíveis e estes devem ser eliminados, mas, para os demais, as penas só funcionam caso terminem. Além disso, a pena serve não apenas para o criminoso, porém para todos os outros; é importante que seu discurso (de eficácia) possa circular socialmente, se legitimando. E para que o criminoso não vire um herói como outrora, “só se propagarão os sinais-obstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo” (p. 93), não mais a glória ou esperteza do contraventor. Trata-se de dispositivos voltados para o futuro. De agora em diante, se pune para transformar um culpado, não para apagar o crime.  


Referência:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 


Fonte: http://tempossafados.blogspot.com.br/2014/07/resumo-completo-de-vigiar-e-punir-parte.html