Pode-se dizer que
Foucault não faz filosofia de forma tradicional. Não há uma exposição
sistemática de conceitos e nem mesmo suas obras formam um todo estável e
coerente, uma espécie de sistema globalizante. Como bem afirmou Deleuze (1992,
p. 130), "o pensamento de Foucault é um pensamento, não que evoluiu, mas
que procedeu por crises". O próprio Foucault (2010) reconhece que o seu
trabalho percorreu três eixos principais: o eixo da formação dos saberes, o
eixo das matrizes normativas de comportamento - as técnicas e procedimentos
pelos quais se empreende conduzir a conduta dos outros -, e o eixo de
constituição do modo de ser do sujeito. São estes dois últimos que serão
resgatados neste trabalho, ou seja, a questão do poder e a questão do sujeito.
Cabe, entretanto,
destacar que no pequeno texto intitulado O Sujeito e o Poder,
Foucault (1995, p. 230) esclarece que o objeto central de seu estudo não é o
poder, mas sim o propósito de "criar uma história dos diferentes modos
pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos". Para
ele, a questão do poder deve ser compreendida no âmbito desta problemática mais
ampla: a da objetivação do sujeito. Assim, a questão do poder só faz sentido
para Foucault em sua relação com a constituição da subjetividade.
Segundo Foucault
(1995), o poder não é algo que se tem, mas algo que se exerce sobre outro, seja
indivíduo ou coletividade. A expressão "relações de poder", tão
utilizada pelo filósofo, faz referência ao fato de que o poder "só existe
em ato" (FOUCAULT, 1995, p. 242) e na interação com outros. Isto significa
que, para o autor, o poder não é objeto pronto, acabado (SÁ e SOARES, 2005).
Para ele, o poder pode ser definido como:
[...] um conjunto de ações sobre
ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o
comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna
mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele
coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou
vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma
ação sobre ações (FOUCAULT, 1995, p. 243).
Temos, portanto, no
exercício do poder - e como concepção geral, isto é, para além das inúmeras
especificidades que a análise do poder traria, e efetivamente trouxe, à tona
quando Foucault tomou exemplos específicos (a fábrica, a escola, as ciências, o
presídio) para descrevê-lo - a "condução de condutas", uma espécie de
ordenamento e estruturação do campo de probabilidade das ações sobre as quais
se age. Desta forma, o poder é compreendido tendo não somente um caráter
proibitivo, mas também produtivo (CLEGG, 2003; FOUCAULT, 1995; CASTRO, 2009),
conclusão à qual chega o pensador francês ao contrapor, às noções clássicas de
poder como dominação e do poder como repressão (ambas - mas especialmente a
primeira - muito comumente aplicadas à crítica do taylorismo), a noção nietzscheanamente inspirada
de poder como luta e enfrentamento, cujo dispositivo principal é o governo
(CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2005) e que habita na ordem das ações, ou da condução
de condutas. Com isso, Foucault dirige o problema do poder ao problema
fundamental do seu funcionamento, retornando ao pensamento grego e à antiga
hipótese do político como pastor de homens para, a partir disso, estabelecer a
genealogia do poder visto sob a noção, ou hipótese, da luta e enfrentamento.
Mas o que é o poder
pastoral? Como ele se constituiu? Quais as suas características?
O poder pastoral não
é algo estável, inerte, como se fosse um modelo que pudesse ser aplicado em
qualquer relação. Para abordá-lo, Foucault (2008) faz um resgate histórico dos
movimentos, conflitos e transformações em torno da temática pastoral.
Foucault (2008) se
pergunta qual seria a origem da ideia de um governo dos homens presente no
Estado Moderno (e que, segundo CASTRO, 2009, é a fonte de outras formas
contemporâneas de poder: o disciplinar e o biopoder). Segundo ele, encontra-se
no Oriente pré-cristão sob a forma de um poder de tipo pastoral e,
posteriormente, no cristianismo sob a forma de direção de consciência, de
direção das almas.
Apesar de ser
frequente em todo o Oriente mediterrâneo a temática do poder pastoral, esse se
desenvolveu e se intensificou entre os hebreus, nos quais a relação entre Deus
e seu povo era concebida como sendo entre um pastor e seu rebanho (FOUCAULT,
2008). O poder da divindade se caracterizava por se exercer sobre "um
rebanho [...] sobre uma multiplicidade em movimento" (FOUCAULT, 2008, p.
168) e não especificamente sobre um território, como no caso dos deuses gregos,
que estavam atrelados a uma localidade específica. Também era um poder
benfazejo, cujo objetivo essencial é a salvação do rebanho através da
providência dos meios de subsistência, cuidado este que tem a peculiaridade de
ser individualizante: "é verdade que o pastor dirige todo o rebanho, mas
ele só pode dirigi-lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe possa
escapar" (FOUCAULT, 2008, p. 172). Há um olhar, um zelo por todos e com
cada um ao mesmo tempo. Assim, destacamos uma diferenciação entre o bom e o mau
pastor:
Toda a preocupação do pastor é uma
preocupação voltada para os outros, nunca para ele mesmo. Está aí,
precisamente, a diferença entre o mau e o bom pastor. O mau pastor é aquele que
só pensa no pasto para engordar o rebanho que poderá vender e dispersar,
enquanto o bom pastor só pensa no seu rebanho e nada além dele. Não busca nem
seu proveito próprio no bem-estar do rebanho (FOUCAULT, 2008, p. 171).
Intercalando a
discussão do tema do pastorado entre os hebreus e no cristianismo, Foucault
(2008; 2012) discorre sobre o mundo grego, apresentando-nos uma série de textos
e dados, no intuito de nos mostrar que o modelo do poder pastoral não é aceito
como o modelo de governo político para os gregos, que optam pelo modelo do
tecelão. Se, antes, houve, entre os egípcios, assírios e hebreus, a presença da
metáfora do pastor para falar da relação entres deuses e homens ou reis e
súditos, na Grécia ela é questionada e não é de forma alguma absoluta.
Há um segundo momento
de fundamental importância para a compreensão do modelo pastoral que, na
verdade, não é uma simples continuação, transposição ou repetição daquilo que
já foi exposto sobre os hebreus. Este novo desenrolar se encontra no
cristianismo:
[...] a verdadeira história do
pastorado, como foco de um tipo específico de poder sobre os homens, a história
do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens,
essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo
(FOUCAULT, 2008, p. 196).
Apesar de Foucault
(2008) situar o desenvolvimento do poder pastoral entre os séculos II e III
depois de Cristo até o século XVIII, ele mesmo afirma que não é possível
assegurar que este desapareceu. Inclusive, ao longo deste período o poder
pastoral se transformou consideravelmente: "Ele por certo foi deslocado,
desmembrado, transformado, integrado a formas diversas, mas no fundo nunca foi
verdadeiramente abolido" (FOUCAULT, 2008, p. 197).
Gregório de Nazianzo
foi, segundo Foucault (2008), o primeiro a definir a arte de governar os homens
pelo pastorado como tékne tekhnôn, epistéme epistemôn, "arte
das artes", "ciência das ciências". O pastorado veio, assim,
substituir a filosofia na arte pela qual as pessoas eram governadas e
governavam outras.
Na Igreja cristã o
tema do pastorado ganhará centralidade. Cristo, primeiramente; depois, seus
prepostos, apóstolos, bispos e padres, todos são tidos como pastores. E como se
caracterizou este poder pastoral ao longo da era cristã? Foucault responde:
O poder pastoral [...] só se
encarrega da alma dos indivíduos na medida em que essa condução das almas
também implica uma intervenção, e uma intervenção permanente na condução
cotidiana, na gestão das vidas, mas também nos bens, nas riquezas, nas coisas
(FOUCAULT, 2008, p. 204).
Note-se que o poder
pastoral no cristianismo é bem diferente da temática pastoral entre os hebreus.
Neste, o tema do pastorado era apenas um dentre vários: Deus-pastor,
Deus-guerreiro, Deus-juiz agora, naquele, além de tornar-se absoluto, também se
institucionaliza. Há, porém, uma diferença crucial que se refere a uma arte específica
de condução dos homens pelos homens:
[...] o pastorado no cristianismo
deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de
controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurrá-los passo
a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletivamente e
individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência
(FOUCAULT, 2008, p. 218-219).
Esta responsabilidade
analítica implica que o pastor deve conhecer cada uma de suas ovelhas
minuciosamente, pois terá que prestar contas de tudo o que a mesma tenha feito
de bom ou de mau. O mesmo ainda será responsabilizado pelas ações de suas
ovelhas: quanto piores forem, maior será o seu mérito em sacrificar-se para
salvá-las. Por outro lado, as fraquezas do pastor contribuem para a edificação
das ovelhas, conduzindo-as à salvação.
Destaca-se aqui o que
Foucault (2008) denomina de "economia dos deméritos e dos méritos"
(FOUCAULT, 2008, p. 229). Há toda uma trama em que as ações de um repercutem
sobre o outro, ações que são imbuídas de valores e que produzem um julgamento
sobre o sujeito, que afirmam uma verdade sobre ele.
Outro ponto a ser
considerado do pastorado cristão é a obediência. Diferentemente dos gregos, em
que a obediência era passageira e tinha finalidade definida, a obediência no
pastorado tem um fim em si mesma.
No pastorado cristão,
segundo Foucault, a relação de submissão de um indivíduo a outro indivíduo está
acima da obediência do mesmo a uma lei, princípio ou ordem. Nem mesmo a razão é
mais relevante que a própria obediência em si. O mérito consiste na própria
obediência, e não em alcançar alguma outra finalidade qualquer, como o se
tornar senhor de si mesmo, por exemplo.
Há evidentes
problemas no entendimento foucaultiano da noção de obediência no cristianismo.
Basicamente, esses problemas se referem à questão do "outro" - que no
cristianismo não é um conceito unívoco, porquanto se refere tanto ao
outro-igual (outro indivíduo humano, um próximo a quem se deve "amar como
a si mesmo"- conforme KIERKEGAARD, 2009) quanto a um outro-superior (que é
o divino, a quem se resigna e se submete, aí sim incondicionalmente ou, como
afirma KIERKEGAARD, 1985, de modo absoluto). Há também problemas quanto
ao télos da obediência, que não é um em si - como supõe
Foucault - mas um princípio de desvelamento do Eu sob uma nova perspectiva
(KIERKEGAARD, 1974; 1985).
Deixando de lado
esses problemas, encontramos o pensador francês relacionando o poder pastoral e
a subjetividade, nos seguintes termos:
[...] o pastorado faz surgir toda
uma prática da submissão do indivíduo ao indivíduo, sob o signo da lei, é
claro, mas fora do seu campo, numa dependência que nunca teve nenhuma
generalidade, que não garante nenhuma liberdade, que não leva a nenhum domínio,
nem de si nem dos outros (FOUCAULT, 2008, p. 237).
Trata-se de uma
obediência que, segundo Foucault (2008, p. 237), implica a destruição do eu. A
renúncia do eu passa a ser valorizada em prol da obediência irrestrita ao outro
(para uma perspectiva diferente da de Foucault quanto à destruição do eu no
âmbito da religiosidade cristã, consulte-se KIERKEGAARD, 1985, ou KIERKEGAARD,
1974).
O pastor, aquele que
porta a verdade, através do ensino passa assim a constituir a subjetividade do
sujeito segundo seus desígnios:
[...] esse ensino deve ser uma
direção da conduta cotidiana. Trata-se não apenas de ensinar o que se deve
saber e o que se deve fazer. Trata-se de ensiná-lo não apenas por princípios
gerais, mas por uma modulação cotidiana, esse ensino também tem de passar por
uma observação, uma vigilância, uma direção exercida a cada instante e da
maneira menos descontínua possível, sobre a conduta integral (FOUCAULT, 2008,
p. 239).
Essa "modulação
cotidiana" está diretamente relacionada à direção de consciência. Temos
aqui a prática da confissão, em que o sujeito examina sua consciência para
expô-la ao seu diretor, que passa a guiá-la:
[...] o pastorado cristão inova
absolutamente ao implantar uma estrutura, uma técnica, ao mesmo tempo de poder,
de investigação, de exame de si e dos outros, pela qual certa verdade, verdade
secreta, verdade da interioridade, verdade da alma oculta, vai ser o elemento
pelo qual se exercerá o poder do pastor, pelo qual se exercerá a obediência,
será assegurada a relação de obediência integral, e através do que passará
justamente a economia dos méritos e deméritos, da obediência absoluta, da
produção das verdades ocultas, é isso que, a meu ver, constitui o essencial, a
originalidade e a especificidade do cristianismo, não a salvação, não a lei,
não a verdade (FOUCAULT, 2008, p. 242).
É através da extração
da verdade sobre o sujeito, através da confissão, que o mesmo passa a ser
objetivado. É ao falar de si para outrem, que uma verdade sobre si é produzida.
O pastor direciona os conteúdos aos quais sua ovelha deve prestar atenção, ele
a guia pelos caminhos da confissão apontando o que é e o que não é pecado, os
pecados mais perigosos e os menos perigosos, enfim, passa a exercer um poder de
direção de consciência.
Posteriormente,
entretanto, no âmbito da discussão da parrhesia, ou do dizer
verdadeiro, a noção de confissão - e, em consequência, a noção de poder
pastoral - é revista pelo pensador francês para adquirir um sentido útil à
constituição do sujeito. Parrhesia "é etimologicamente o
'tudo dizer'. [...] a franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com que se
diga o que se tem a dizer, da maneira como se tem vontade de dizer, quando se
tem vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer"
(FOUCAULT, 2006, p. 450; FOUCAULT, 2012). É "[...] 'retórica não-retórica'
[...]. Retórica porque não deixa de ser a técnica discursiva que utiliza
positivamente da persuasão; não retórica, porque o bem falar não constitui a
finalidade do discurso, sendo ao lado do questionamento, do exame e da
admoestação, nada mais que meio para alcançar fim diverso, que em definitivo é
o senhorio de si (...) daquele para o qual o discurso está dirigido, bem como a
credibilidade de mestre, para aquele que discursa" (CANDIOTTO, 2011, p.
33).
De acordo com a
análise de Muchail (2011, p. 160), "como ninguém é bom juiz de si mesmo,
cada qual deve escolher alguém, um outro, que lhe fale francamente. Mestre,
guia, diretor, é ele quem fala". A condição necessária a tal mestre é,
portanto, o franco-falar, o dizer-verdadeiro, a liberdade de palavra (FOUCAULT,
2006, p. 449-451), para que ele seja filosoficamente útil ao indivíduo que, no
exercício ascético de sua autoconstituição, tomou-o como confessor (CANDIOTTO,
2011). É, portanto, no mesmo contexto da direção de consciência que Foucault
irá localizar, igualmente, o poder pastoral (talvez como categoria mais ampla),
aparrhesia, e a retórica; a distinção entre essas duas últimas
categorias é importante para o entendimento da noção de verdade na parrhesia.
A retórica "prescinde da convicção daquele que enuncia em relação ao
conteúdo da enunciação" (CANDIOTTO, 2011, p. 33). É o falar
descompromissado com a verdade, e mesmo com a verdade para quem fala. Ainda que
a parrhesia não seja o saber certo, e sim o conhecimento
plausível (MUCHAIL, 2011), ela é, enquanto prática de si, o exato oposto da
retórica (CANDIOTTO, 2011).
Finalmente, como se
pode facilmente observar, todas essas categorias se inscrevem no âmbito da
discussão da subjetivação dos discursos de verdade "que funcionam [no caso
da parrhesia] como matrizes de ação, ajudando o indivíduo a
enfrentar os acontecimentos decorrentes das vicissitudes da existência"
(CANDIOTTO, 2011, p. 33). Todas elas interligam o problema da constituição de
si com a questão da verdade, porquanto mediante o pastoreio, seja retórico,
seja parrheriástico, o indivíduo vem a se inscrever - ou a ser
inscrito - em um âmbito de produção de verdades sobre si mesmo.
Tais noções, que
circunscrevem a noção mais ampla do poder pastoral (e do poder, em seu sentido
geral, conforme proposto por Foucault), constituem o ferramental analítico para
abordar o poder em suas manifestações históricas e em contraposição a
abordagens centradas na dominação, ou soberania, e na repressão (FOUCAULT, 2005).
Elas configuram uma análise sob outra perspectiva, centrada na possibilidade de
liberdade entre os agentes implicados na relação de poder, entendidas como
relações de governo, e que é elaborada pelo pensador francês para pensar as
atuais manifestações do poder, principalmente no Estado moderno, mas também em
outras instituições, dentre as quais as empresas privadas (CASTRO, 2009;
FOUCAULT, 2005). Se é assim, elas podem - e são - igualmente, ferramental para
investigação das origens da administração científica, centrada no pensamento
tayloriano, conforme endereçamos a seguir.