04/05/2015

O Poder Pastoral - Michel Foucault

Pode-se dizer que Foucault não faz filosofia de forma tradicional. Não há uma exposição sistemática de conceitos e nem mesmo suas obras formam um todo estável e coerente, uma espécie de sistema globalizante. Como bem afirmou Deleuze (1992, p. 130), "o pensamento de Foucault é um pensamento, não que evoluiu, mas que procedeu por crises". O próprio Foucault (2010) reconhece que o seu trabalho percorreu três eixos principais: o eixo da formação dos saberes, o eixo das matrizes normativas de comportamento - as técnicas e procedimentos pelos quais se empreende conduzir a conduta dos outros -, e o eixo de constituição do modo de ser do sujeito. São estes dois últimos que serão resgatados neste trabalho, ou seja, a questão do poder e a questão do sujeito.
Cabe, entretanto, destacar que no pequeno texto intitulado O Sujeito e o Poder, Foucault (1995, p. 230) esclarece que o objeto central de seu estudo não é o poder, mas sim o propósito de "criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos". Para ele, a questão do poder deve ser compreendida no âmbito desta problemática mais ampla: a da objetivação do sujeito. Assim, a questão do poder só faz sentido para Foucault em sua relação com a constituição da subjetividade.
Segundo Foucault (1995), o poder não é algo que se tem, mas algo que se exerce sobre outro, seja indivíduo ou coletividade. A expressão "relações de poder", tão utilizada pelo filósofo, faz referência ao fato de que o poder "só existe em ato" (FOUCAULT, 1995, p. 242) e na interação com outros. Isto significa que, para o autor, o poder não é objeto pronto, acabado (SÁ e SOARES, 2005). Para ele, o poder pode ser definido como:
[...] um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1995, p. 243).
Temos, portanto, no exercício do poder - e como concepção geral, isto é, para além das inúmeras especificidades que a análise do poder traria, e efetivamente trouxe, à tona quando Foucault tomou exemplos específicos (a fábrica, a escola, as ciências, o presídio) para descrevê-lo - a "condução de condutas", uma espécie de ordenamento e estruturação do campo de probabilidade das ações sobre as quais se age. Desta forma, o poder é compreendido tendo não somente um caráter proibitivo, mas também produtivo (CLEGG, 2003; FOUCAULT, 1995; CASTRO, 2009), conclusão à qual chega o pensador francês ao contrapor, às noções clássicas de poder como dominação e do poder como repressão (ambas - mas especialmente a primeira - muito comumente aplicadas à crítica do taylorismo), a noção nietzscheanamente inspirada de poder como luta e enfrentamento, cujo dispositivo principal é o governo (CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2005) e que habita na ordem das ações, ou da condução de condutas. Com isso, Foucault dirige o problema do poder ao problema fundamental do seu funcionamento, retornando ao pensamento grego e à antiga hipótese do político como pastor de homens para, a partir disso, estabelecer a genealogia do poder visto sob a noção, ou hipótese, da luta e enfrentamento.
Mas o que é o poder pastoral? Como ele se constituiu? Quais as suas características?
O poder pastoral não é algo estável, inerte, como se fosse um modelo que pudesse ser aplicado em qualquer relação. Para abordá-lo, Foucault (2008) faz um resgate histórico dos movimentos, conflitos e transformações em torno da temática pastoral.
Foucault (2008) se pergunta qual seria a origem da ideia de um governo dos homens presente no Estado Moderno (e que, segundo CASTRO, 2009, é a fonte de outras formas contemporâneas de poder: o disciplinar e o biopoder). Segundo ele, encontra-se no Oriente pré-cristão sob a forma de um poder de tipo pastoral e, posteriormente, no cristianismo sob a forma de direção de consciência, de direção das almas.
Apesar de ser frequente em todo o Oriente mediterrâneo a temática do poder pastoral, esse se desenvolveu e se intensificou entre os hebreus, nos quais a relação entre Deus e seu povo era concebida como sendo entre um pastor e seu rebanho (FOUCAULT, 2008). O poder da divindade se caracterizava por se exercer sobre "um rebanho [...] sobre uma multiplicidade em movimento" (FOUCAULT, 2008, p. 168) e não especificamente sobre um território, como no caso dos deuses gregos, que estavam atrelados a uma localidade específica. Também era um poder benfazejo, cujo objetivo essencial é a salvação do rebanho através da providência dos meios de subsistência, cuidado este que tem a peculiaridade de ser individualizante: "é verdade que o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigi-lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe possa escapar" (FOUCAULT, 2008, p. 172). Há um olhar, um zelo por todos e com cada um ao mesmo tempo. Assim, destacamos uma diferenciação entre o bom e o mau pastor:
Toda a preocupação do pastor é uma preocupação voltada para os outros, nunca para ele mesmo. Está aí, precisamente, a diferença entre o mau e o bom pastor. O mau pastor é aquele que só pensa no pasto para engordar o rebanho que poderá vender e dispersar, enquanto o bom pastor só pensa no seu rebanho e nada além dele. Não busca nem seu proveito próprio no bem-estar do rebanho (FOUCAULT, 2008, p. 171).
Intercalando a discussão do tema do pastorado entre os hebreus e no cristianismo, Foucault (2008; 2012) discorre sobre o mundo grego, apresentando-nos uma série de textos e dados, no intuito de nos mostrar que o modelo do poder pastoral não é aceito como o modelo de governo político para os gregos, que optam pelo modelo do tecelão. Se, antes, houve, entre os egípcios, assírios e hebreus, a presença da metáfora do pastor para falar da relação entres deuses e homens ou reis e súditos, na Grécia ela é questionada e não é de forma alguma absoluta.
Há um segundo momento de fundamental importância para a compreensão do modelo pastoral que, na verdade, não é uma simples continuação, transposição ou repetição daquilo que já foi exposto sobre os hebreus. Este novo desenrolar se encontra no cristianismo:
[...] a verdadeira história do pastorado, como foco de um tipo específico de poder sobre os homens, a história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo (FOUCAULT, 2008, p. 196).
Apesar de Foucault (2008) situar o desenvolvimento do poder pastoral entre os séculos II e III depois de Cristo até o século XVIII, ele mesmo afirma que não é possível assegurar que este desapareceu. Inclusive, ao longo deste período o poder pastoral se transformou consideravelmente: "Ele por certo foi deslocado, desmembrado, transformado, integrado a formas diversas, mas no fundo nunca foi verdadeiramente abolido" (FOUCAULT, 2008, p. 197).
Gregório de Nazianzo foi, segundo Foucault (2008), o primeiro a definir a arte de governar os homens pelo pastorado como tékne tekhnôn, epistéme epistemôn, "arte das artes", "ciência das ciências". O pastorado veio, assim, substituir a filosofia na arte pela qual as pessoas eram governadas e governavam outras.
Na Igreja cristã o tema do pastorado ganhará centralidade. Cristo, primeiramente; depois, seus prepostos, apóstolos, bispos e padres, todos são tidos como pastores. E como se caracterizou este poder pastoral ao longo da era cristã? Foucault responde:
O poder pastoral [...] só se encarrega da alma dos indivíduos na medida em que essa condução das almas também implica uma intervenção, e uma intervenção permanente na condução cotidiana, na gestão das vidas, mas também nos bens, nas riquezas, nas coisas (FOUCAULT, 2008, p. 204).
Note-se que o poder pastoral no cristianismo é bem diferente da temática pastoral entre os hebreus. Neste, o tema do pastorado era apenas um dentre vários: Deus-pastor, Deus-guerreiro, Deus-juiz agora, naquele, além de tornar-se absoluto, também se institucionaliza. Há, porém, uma diferença crucial que se refere a uma arte específica de condução dos homens pelos homens:
[...] o pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurrá-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletivamente e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência (FOUCAULT, 2008, p. 218-219).
Esta responsabilidade analítica implica que o pastor deve conhecer cada uma de suas ovelhas minuciosamente, pois terá que prestar contas de tudo o que a mesma tenha feito de bom ou de mau. O mesmo ainda será responsabilizado pelas ações de suas ovelhas: quanto piores forem, maior será o seu mérito em sacrificar-se para salvá-las. Por outro lado, as fraquezas do pastor contribuem para a edificação das ovelhas, conduzindo-as à salvação.
Destaca-se aqui o que Foucault (2008) denomina de "economia dos deméritos e dos méritos" (FOUCAULT, 2008, p. 229). Há toda uma trama em que as ações de um repercutem sobre o outro, ações que são imbuídas de valores e que produzem um julgamento sobre o sujeito, que afirmam uma verdade sobre ele.
Outro ponto a ser considerado do pastorado cristão é a obediência. Diferentemente dos gregos, em que a obediência era passageira e tinha finalidade definida, a obediência no pastorado tem um fim em si mesma.
No pastorado cristão, segundo Foucault, a relação de submissão de um indivíduo a outro indivíduo está acima da obediência do mesmo a uma lei, princípio ou ordem. Nem mesmo a razão é mais relevante que a própria obediência em si. O mérito consiste na própria obediência, e não em alcançar alguma outra finalidade qualquer, como o se tornar senhor de si mesmo, por exemplo.
Há evidentes problemas no entendimento foucaultiano da noção de obediência no cristianismo. Basicamente, esses problemas se referem à questão do "outro" - que no cristianismo não é um conceito unívoco, porquanto se refere tanto ao outro-igual (outro indivíduo humano, um próximo a quem se deve "amar como a si mesmo"- conforme KIERKEGAARD, 2009) quanto a um outro-superior (que é o divino, a quem se resigna e se submete, aí sim incondicionalmente ou, como afirma KIERKEGAARD, 1985, de modo absoluto). Há também problemas quanto ao télos da obediência, que não é um em si - como supõe Foucault - mas um princípio de desvelamento do Eu sob uma nova perspectiva (KIERKEGAARD, 1974; 1985).
Deixando de lado esses problemas, encontramos o pensador francês relacionando o poder pastoral e a subjetividade, nos seguintes termos:
[...] o pastorado faz surgir toda uma prática da submissão do indivíduo ao indivíduo, sob o signo da lei, é claro, mas fora do seu campo, numa dependência que nunca teve nenhuma generalidade, que não garante nenhuma liberdade, que não leva a nenhum domínio, nem de si nem dos outros (FOUCAULT, 2008, p. 237).
Trata-se de uma obediência que, segundo Foucault (2008, p. 237), implica a destruição do eu. A renúncia do eu passa a ser valorizada em prol da obediência irrestrita ao outro (para uma perspectiva diferente da de Foucault quanto à destruição do eu no âmbito da religiosidade cristã, consulte-se KIERKEGAARD, 1985, ou KIERKEGAARD, 1974).
O pastor, aquele que porta a verdade, através do ensino passa assim a constituir a subjetividade do sujeito segundo seus desígnios:
[...] esse ensino deve ser uma direção da conduta cotidiana. Trata-se não apenas de ensinar o que se deve saber e o que se deve fazer. Trata-se de ensiná-lo não apenas por princípios gerais, mas por uma modulação cotidiana, esse ensino também tem de passar por uma observação, uma vigilância, uma direção exercida a cada instante e da maneira menos descontínua possível, sobre a conduta integral (FOUCAULT, 2008, p. 239).
Essa "modulação cotidiana" está diretamente relacionada à direção de consciência. Temos aqui a prática da confissão, em que o sujeito examina sua consciência para expô-la ao seu diretor, que passa a guiá-la:
[...] o pastorado cristão inova absolutamente ao implantar uma estrutura, uma técnica, ao mesmo tempo de poder, de investigação, de exame de si e dos outros, pela qual certa verdade, verdade secreta, verdade da interioridade, verdade da alma oculta, vai ser o elemento pelo qual se exercerá o poder do pastor, pelo qual se exercerá a obediência, será assegurada a relação de obediência integral, e através do que passará justamente a economia dos méritos e deméritos, da obediência absoluta, da produção das verdades ocultas, é isso que, a meu ver, constitui o essencial, a originalidade e a especificidade do cristianismo, não a salvação, não a lei, não a verdade (FOUCAULT, 2008, p. 242).
É através da extração da verdade sobre o sujeito, através da confissão, que o mesmo passa a ser objetivado. É ao falar de si para outrem, que uma verdade sobre si é produzida. O pastor direciona os conteúdos aos quais sua ovelha deve prestar atenção, ele a guia pelos caminhos da confissão apontando o que é e o que não é pecado, os pecados mais perigosos e os menos perigosos, enfim, passa a exercer um poder de direção de consciência.
Posteriormente, entretanto, no âmbito da discussão da parrhesia, ou do dizer verdadeiro, a noção de confissão - e, em consequência, a noção de poder pastoral - é revista pelo pensador francês para adquirir um sentido útil à constituição do sujeito. Parrhesia "é etimologicamente o 'tudo dizer'. [...] a franqueza, a liberdade, a abertura, que fazem com que se diga o que se tem a dizer, da maneira como se tem vontade de dizer, quando se tem vontade de dizer e segundo a forma que se crê ser necessário dizer" (FOUCAULT, 2006, p. 450; FOUCAULT, 2012). É "[...] 'retórica não-retórica' [...]. Retórica porque não deixa de ser a técnica discursiva que utiliza positivamente da persuasão; não retórica, porque o bem falar não constitui a finalidade do discurso, sendo ao lado do questionamento, do exame e da admoestação, nada mais que meio para alcançar fim diverso, que em definitivo é o senhorio de si (...) daquele para o qual o discurso está dirigido, bem como a credibilidade de mestre, para aquele que discursa" (CANDIOTTO, 2011, p. 33).
De acordo com a análise de Muchail (2011, p. 160), "como ninguém é bom juiz de si mesmo, cada qual deve escolher alguém, um outro, que lhe fale francamente. Mestre, guia, diretor, é ele quem fala". A condição necessária a tal mestre é, portanto, o franco-falar, o dizer-verdadeiro, a liberdade de palavra (FOUCAULT, 2006, p. 449-451), para que ele seja filosoficamente útil ao indivíduo que, no exercício ascético de sua autoconstituição, tomou-o como confessor (CANDIOTTO, 2011). É, portanto, no mesmo contexto da direção de consciência que Foucault irá localizar, igualmente, o poder pastoral (talvez como categoria mais ampla), aparrhesia, e a retórica; a distinção entre essas duas últimas categorias é importante para o entendimento da noção de verdade na parrhesia. A retórica "prescinde da convicção daquele que enuncia em relação ao conteúdo da enunciação" (CANDIOTTO, 2011, p. 33). É o falar descompromissado com a verdade, e mesmo com a verdade para quem fala. Ainda que a parrhesia não seja o saber certo, e sim o conhecimento plausível (MUCHAIL, 2011), ela é, enquanto prática de si, o exato oposto da retórica (CANDIOTTO, 2011).
Finalmente, como se pode facilmente observar, todas essas categorias se inscrevem no âmbito da discussão da subjetivação dos discursos de verdade "que funcionam [no caso da parrhesia] como matrizes de ação, ajudando o indivíduo a enfrentar os acontecimentos decorrentes das vicissitudes da existência" (CANDIOTTO, 2011, p. 33). Todas elas interligam o problema da constituição de si com a questão da verdade, porquanto mediante o pastoreio, seja retórico, seja parrheriástico, o indivíduo vem a se inscrever - ou a ser inscrito - em um âmbito de produção de verdades sobre si mesmo.

Tais noções, que circunscrevem a noção mais ampla do poder pastoral (e do poder, em seu sentido geral, conforme proposto por Foucault), constituem o ferramental analítico para abordar o poder em suas manifestações históricas e em contraposição a abordagens centradas na dominação, ou soberania, e na repressão (FOUCAULT, 2005). Elas configuram uma análise sob outra perspectiva, centrada na possibilidade de liberdade entre os agentes implicados na relação de poder, entendidas como relações de governo, e que é elaborada pelo pensador francês para pensar as atuais manifestações do poder, principalmente no Estado moderno, mas também em outras instituições, dentre as quais as empresas privadas (CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2005). Se é assim, elas podem - e são - igualmente, ferramental para investigação das origens da administração científica, centrada no pensamento tayloriano, conforme endereçamos a seguir.