06/09/2015

O Estado I Tomas Hobbes

"Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens.
É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.
Em primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que não se encontram obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual. Consequentemente, aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença.
Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando á confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembléia de homens. Pois são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer. Assim, a dissensão de alguém levaria todos os restantes a romper o pacto feito com esse alguém, o que constitui injustiça.
Por outro lado, cada homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa, portanto se o depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui injustiça. Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer. E, dado que constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto.
E quando alguns homens, desobedecendo a seu soberano, pretendem ter celebrado um novo pacto, não com homens, mas com Deus, também isto é injusto, pois não há pacto com Deus a não ser através da mediação de alguém que represente a pessoa de Deus, e ninguém o faz a não ser o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania abaixo de Deus. E esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente, mesmo perante a própria consciência de quem tal pretende, que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano.
Em segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto a parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração.
É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com seus súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade de parte do pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles. Com o todo, na qualidade de parte, é impossível, porque nesse momento eles ainda não constituem uma pessoa. E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois de ele receber a soberania esses pactos serão nulos, pois qualquer ato que possa ser apresentado por um deles como rompimento do pacto será um ato praticado na pessoa e pelo direito de cada um deles em particular.
Além disso, se algum ou mais de um deles pretender que houve infração do pacto feito pelo soberano quando de sua instituição, e outros ou um só de seus súditos, ou mesmo apenas ele próprio, pretender que não houve tal infração, não haverá nesse caso qualquer juiz capaz de decidir a controvérsia. Volta portanto a ser a força a decidir, e cada um recupera o direito de se defender por seus próprios meios, contrariamente à intenção que o levara àquela instituição. Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior.
A opinião segundo a qual o monarca recebe de um pacto seu poder, quer dizer, sob certas condições, deriva de não se compreender esta simples verdade: que os pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser o que deriva da espada pública. Ou seja, das mãos livres e sem peias daquele homem, ou assembléia de homens, que detém a soberania, cujas ações são garantidas por todos, e realizadas pela força de todos os que nele se encontram unidos. Quando se confere a soberania a uma assembléia de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição.
Pois ninguém é suficientemente tolo para dizer, por exemplo, que o povo de Roma fez um pacto com os romanos para deter a soberania sob tais e tais condições, as quais, quando não cumpridas, dariam aos romanos o direito de depor o povo de Roma. O fato de os homens não verem a razão para que se passe o mesmo numa monarquia e num governo popular deriva da ambição de alguns, que vêem com mais simpatia o governo de uma assembléia, da qual podem ter a esperança de vir a participar, do que o de uma monarquia, da qual é impossível esperarem desfrutar.
Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar reconhecer todos os atos que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos restantes. Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que constituíam a assembléia, declarou suficientemente com esse ato sua vontade (e portanto tacitamente fez um pacto) de se conformar ao que a maioria decidir.
Portanto, se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus decretos, age contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça parte da congregação, quer não faça, e que seu consentimento seja pedido, quer não seja, ou terá que submeter-se a seus decretos ou será deixado na condição de guerra em que antes se encontrava, e na qual pode, sem injustiça, ser destruído por qualquer um..
Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo.
Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniquidades, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio.

Em quinto lugar, e em conseqüência do que foi dito por último, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. Dado que cada súdito é autor dos atos de seu soberano, cada um estaria castigando outrem pelos atos cometidos por si mesmo". (Ibidem, cap. XVIII, p. 107-9)